Continuando uma história: um legado que merece ser continuado
Demorei muito para me decidir, mas acho que esse blog é um legado que merece ser mantido. Para os que não sabem a Dra. Aline faleceu há exatamente 1 mês. Eu como seu esposo e parceiro sempre tive uma discreta participação por aqui. Fosse revisando, ajudando em alguma pesquisa ou apenas palpitando. Não tenho o mesmo etilo nem a sua fluência para escrever. Decidi continuar porque sua postagem de dezembro (Porque é tão difícil falar sobre a morte? Mas é muito necessário!) foi absolutamente fundamental para conseguir conduzir nossa filha no momento mais difícil da minha vida. Seguramente esse verdadeiro manual de instruções, muito me ajudou a conduzir a situação em um momento tão duro.
Ensinando a criança a conviver com o luto
Embora a morte faça parte da vida, é muito difícil discuti-la quanto mais vivencia-la. Já foi abordado aqui como introduzir a criança na situação de morte (É o mesmo link). Passada a primeira fase é necessário retomar o dia a dia e nem sempre isso é fácil.
Muitos adultos acreditam que a criança não entende nada sobre a morte e deve ser poupada de saber que alguém próxima a ela morreu. Isso não é necessariamente verdade. As crianças sempre estão atentas ao que ocorre à sua volta e subestimar isso não é legal.
Quando a criança perde uma pessoa querida muito próxima, sentimentos como tristeza, confusão aparecem. A mesma morte é sentida por seus familiares, que normalmente estão sem condições de manter a intensidade de cuidado e atenção que antes dirigiam a ela. Passado o primeiro momento a criança precisa voltar a se sentir segura e bem cuidada.
Nas semanas seguintes à perda, as crianças podem ficar muito tristes ou talvez creiam que a pessoa querida permanece viva. Neste momento a criança deve ser estimulada a externar sua tristeza. Chorar junto nessa hora pode ser muito confortador para a criança e para o adulto. A raiva é uma reação esperada que pode se manifestar por meio de comportamento irritadiço, pesadelos, medos ou agressão a amiguinhos ou familiares. De qualquer maneira, sabemos que a reação da criança ao luto está bastante relacionada à forma como os pais ou pai sobrevivente e outros parentes abordarão esta questão com ela nas semanas e meses que sucederão a perda.
Entre os cinco e nove anos a morte é percebida como irreversível, mas não como algo natural. A morte é vista como algo distante, que só ocorre com os outros, a menos que haja uma perda de alguém muito próximo. Somente entre nove e dez anos a morte passa a ser percebida como uma interrupção das atividades dentro do corpo, que faz parte da vida, que é natural.
Devemos deixar a criança a vontade para exprimir os seus sentimentos. Participar do enterro ou velório é importante, mas a vontade da criança deve ser respeitada.
Como foi com a Bia?
Quando tudo aconteceu, era muito cedo e, por causa da noite anterior tumultuada, ela dormiu na casa de uma coleguinha. Liguei para lá e avisei a mãe e pedi que a deixasse na escola. Avisei na escola que a buscaria mais tarde e pedi que deixasse uma sala separada para conversarmos. Depois que tudo estava resolvido e o velório iniciou recebia as pessoas mais próximas e fui tentando me preparar para o que seria contar para ela. Acreditem, não há manual que te ensine a se preparar para isso. Quando deu 4 e meia saí discretamente e fui busca-la na escola.
Lá fomos para uma sala isolada (NB: ela acompanhou toda doença da mãe, inclusive foi visitá-la na UTI enquanto foi possível). Fomos para uma sala e contei, de forma clara, explicando que a mamãe havia piorado muito, os médicos tinham tentado de tudo, mas a mamãe morreu. Sim as palavras foram exatamente essas. Não adianta dourar a pílula nem usar metáforas pouco explicativas. Ela me abraçou e chorou por alguns minutos. Quando ela se acalmou eu expliquei que iríamos nos despedir do corpo dela, uma vez que seu espírito naquele momento estava procurando o caminho do céu (somos kardecistas e é importante se apoiar na fé, nessas horas). Coloquei ela no carro e fomos. No caminho procurei descrever com a maior precisão tudo o que ela iria ver (o corpo no caixão, as flores [mamãe gostava muito], as coroas, as velas...). Nesse meio de caminho, me comuniquei com 2 amigas, que me monitoravam o tempo todo (elas não imaginam o quanto sou grato à força que recebi de ambas, mas depois daqui elas saberão...). Elas esvaziaram a câmara ardente (odeio esse nome) e fecharam as portas. No caminho, a Bia mais calma me perguntava coisas que são bem próprias de criança. Nessa hora NENHUMA dúvida deixa de ser importante e deve ser esclarecida da forma mais clara possível: É para sempre mesmo (uma 10 x)? Posso falar com ela? O que é morrer (essa foi difícil, mas acho que resolvi)?
Chegamos lá. Entramos sozinhos (fiz tudo para que ela não reparasse em todo mundo que estava lá). Lá dentro, de novo, expliquei tudo que estava acontecendo. Ela olhou as coroas, perguntou o que estava escrito em cada uma. Deixei ela a vontade para explorar tudo. Ela pediu para ver o caixão e peguei ela no colo. Ela viu a mãe e perguntou o porque de tantas flores (porque a mamãe gostava...). Expliquei que quando o espírito sai do corpo esse se desliga e por isso estava frio. Perguntei se ela queria por a mão, algo que ela recusou e respeitei. Nos despedimos com uma oração e quando julguei que ela estava pronta, perguntei se ela queria sair, o que concordou. Não tenho idéia de quanto tempo ficamos lá dentro. Para mim foram décadas. Ao sairmos demos de cara com todos os amigos e parentes. Ao ver uns 200 pares de olhos fixos nela, ela se virou e me abraçou. Eu abaixei e ela, recostada no meu ombro, chorou sentidamente. Não tenho a mais vaga noção de quanto tempo permanecemos nessa posição, mas parece que foi uma eternidade. Quando ela parou de chorar, levantamos e começamos a andar entre as pessoas. Ela pediu para ir embora, o que foi respeitado (meus 2 anjos já haviam se articulado para isso) e el foi ficar na casa de amigos.
Após o final da cerimônia de cremação, fui buscá-la e trouxe para casa.
Desde então...
É fundamental viver um dia de cada vez. Cada momento de saudade, cada alegria, cada tristeza devem ser vividos e resolvidos. Ajuda profissional é fundamental. Nenhum pai está totalmente preparado para isso. Temos uma psicóloga sensacional nos apoiando. Outro dia ao chegarmos a Bia soltou minha mão e pulou no colo dela (acertamos na escolha). Por mais que seja doloroso, ir a festas, fazer bagunça e seguir a vida. Com o tempo, a dor será substituída por uma saudade, que o tempo transformará de amarga em doce. Até lá, a presença dos amigos, o apoio profissional, o suporte religioso e o contato com a família foram, são e serão fundamentais.